Quase quatro anos depois de o Supremo Tribunal Federal decidir que o ensino domiciliar, ou homeschooling, era tema que cabia ao Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados finalmente deu um passo para tirar da ilegalidade milhares de famílias que, por diversas razões, optaram por educar seus filhos em casa. Na quarta-feira, dia 18, horas depois de aprovar um requerimento para que o Projeto de Lei 3.179/12 tramitasse em regime de urgência, a casa também aprovou o texto-base do PL, relatado pela deputada Luísa Canziani (PSD-PR), com 264 votos favoráveis e 144 contrários. Na quinta-feira, os deputados rejeitaram todos os destaques e concluíram a análise do projeto, que será enviado ao Senado.
Em 2018, o STF julgou o caso de uma família gaúcha que resolvera adotar o ensino domiciliar, mas enfrentara oposição da Secretaria de Educação de seu município, que desejava obrigar a matrícula em uma instituição de ensino. De forma bastante incomum para uma corte tão propensa ao ativismo judicial, a maioria do plenário adotou uma posição de respeito ao Poder Legislativo: decidiu que não havia proibição constitucional ao homeschooling, mas que, para ele se tornar um direito das famílias, era preciso que o Congresso o regulamentasse. Como os congressistas demorassem a analisar o tema, Legislativos estaduais em várias unidades da Federação acabaram aprovando a própria legislação, que em alguns casos acabou derrubada pela Justiça sob a alegação de que o Supremo havia delegado a tarefa ao Congresso Nacional, não a Assembleias Legislativas. Era preciso, de fato, que deputados e senadores se mexessem.
A educação domiciliar deve estar contemplada no rol de escolhas à disposição de pais e responsáveis; já há muito tempo aqueles que fizeram esta opção deveriam ter sido retirados da ilegalidade
De acordo com o PL 3.179, o ensino domiciliar passa a ser permitido às famílias sob algumas condições, como a necessidade de ao menos um dos pais ter ensino superior ou diploma de educação profissional ou tecnológica (ou, então, contratar um tutor com este nível de escolaridade); o estudante ainda deverá estar matriculado em escola pública ou particular, que deverá fazer um acompanhamento de frequência e do progresso do aluno, por meio de avaliações anuais. Caso o estudante seja reprovado nessas avaliações por dois anos seguidos, ou por três anos não consecutivos, ele perderá o direito ao ensino domiciliar e terá de estudar normalmente em uma instituição de ensino.
As objeções dos adversários do ensino domiciliar já são amplamente conhecidas, especialmente a crítica a uma suposta falta de socialização da criança – como se o ambiente escolar fosse o único onde tal interação seria possível, ignorando inclusive as redes de relacionamento formadas por famílias homeschoolers. Já o risco de aumento de casos de abuso é real (basta perceber o aumento do número de denúncias durante a pandemia, quando as escolas foram fechadas), mas o projeto leva em conta este aspecto ao prever o envolvimento do Conselho Tutelar na fiscalização do ambiente em que a criança está sendo educada. Mas a ala contrária ao homeschooling não foi a única insatisfeita com o PL 3.179; muitos pais gostariam de uma liberdade maior e criticaram algumas exigências do projeto.
É necessário dizer, no entanto, que a regulamentação aprovada na Câmara é bastante razoável, ao menos para este primeiro momento. Não há exigências desproporcionais ou descabidas, especialmente quando a preocupação com uma possível onda de evasão escolar disfarçada de ensino domiciliar ainda é bastante legítima. Faz sentido exigir um nível educacional mínimo daqueles que serão responsáveis por educar a criança ou o adolescente, da mesma forma que não há como abrir mão de submeter o estudante às mesmas avaliações – nem mais rigorosas, nem mais fáceis – feitas por aqueles que frequentam a escola regular, como forma de medir a sua evolução. Apenas à medida que a prática do ensino domiciliar se mostre bem-sucedida será possível pensar em mudanças mais liberalizantes. Concentrar-se em uma suposta rigidez, agora, é perder de vista o tamanho da vitória que as famílias envolvidas com o homeschooling acabam de conquistar.
Uma série de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário reconhece o direito de as famílias tomarem as decisões mais fundamentais a respeito da educação das crianças e adolescentes. Também a educação domiciliar deve estar contemplada no rol de escolhas à disposição de pais e responsáveis; já há muito tempo aqueles que fizeram esta opção deveriam ter sido retirados da ilegalidade. Se o PL 3.179/12 passar também pelo Senado, o que se espera de todos os envolvidos é responsabilidade: que pais, responsáveis e preceptores se empenhem em oferecer o melhor aos estudantes, e que os responsáveis pela fiscalização, como educadores e conselheiros tutelares, coloquem o respeito ao direito das famílias acima de quaisquer eventuais posições pessoais a respeito desta modalidade de ensino. (Por Gazeta do Povo)