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Quando as palavras teimam em sair

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*Por Bruna Siqueira Campos

Escrever costuma ser um ofício, mas também é um estado catártico. Principalmente quando a realidade se mistura às boas memórias que permeiam nossas lembranças.

Madrugada de 9 de maio de 2021. Mexo no celular procurando fotos antigas. Encontro registros de aniversários em família, abraços, sorrisos, finais de semana em Gravatá. Me deparo com uma em especial do meu avô. Óculos, bigode simpático, sorriso de canto no rosto. Eu, de noiva, ele de mãos dadas comigo representando meu pai, que há muitos anos mora em outro país.

O pai do meu pai me conduziria à capelinha onde um de seus filhos, o segundo de uma escadinha de cinco, nos aguardava para celebrar meu casamento. Foi um dia feliz e meu avô estava lá, como muitas vezes, de mãos dadas com um de seus netos.

Eu sou a mais velha. Nasci quando meus pais eram “dois meninos” de 19 anos. Minha infância foi maravilhosa, muito disso graças aos meus avós.

O Janja tinha um opalão dourado que era sucesso – tantas e tantas vezes viajamos para a casa deles em Gravatá naquele carro, rindo, fazendo festa, comendo biscoito, parando na BR-232 pra comprar coalhada. Eu nunca gostei da aparência daquilo e acho que os demais netos também não, mas era ritual dos nossos avós. “Os netos de Lisette e Jandir” – era assim que nos conheciam na Chácara Suíça, onde a gente tomava banho de piscina até congelar os dedos ao som das cigarras.

Um monte de lembranças chegaram à minha cabeça. Eu, sozinha, naquela madrugada, num estacionamento de hospital, precisava digerir a sua partida. Vovô foi embora, mais uma vítima da Covid. Estava com Alzheimer e sua saúde de homem de 87 anos não andava lá essas coisas. Vivia dia após dia perdido em um mundo particular, cheio de lapsos comuns à velhice. Ainda assim, lembrei de quando ele me cobrou, após meses sem nos vermos: “Filha, faz muito tempo”…

Fazia mesmo. Então lembrei do carro, das férias, das viagens, das risadas dos meus avós e das vezes que ele teimava em me confundir com mais um de seus filhos. Das manhãs frias em Gravatá. Dos deliciosos pratinhos de batata frita que eu e meus primos pedíamos e que a gente colocava na “conta de vovô” enquanto ele jogava pôquer com Seu Toscano e outros amigos. Das suas caminhadas com vovó Lisette na praia, das viagens que eles amavam para Guarapari, das conversas rápidas ao telefone. “Vou passar pra sua avó”, me dizia ele, sempre, quando eu ligava.

Lili se foi em 2014, com uma lucidez que faltou a ele no fim dessa trajetória. Muito de seu Janja partiu ali também, com sua companheira, que era de uma vitalidade sem igual. Já me peguei rindo várias vezes, me lembrando das histórias que ela contava.

Uma vez, suspeitou de que ele estava se engraçando com uma fulana e colocou um disfarce na minha bisavó Dolores e em sua empregada, Das Dores. Cada uma com uma peruca, fazendo as vezes de detetive com um profissionalismo de dar inveja a James Bond (mas essa história eu conto depois, quem sabe).

O Janja era louco por um doce. Não dispensava um bolinho, mas comia escondido de vovó, que era diabética, para não provocar a esposa. Comerciante “raiz”, trabalhou de domingo a domingo por muitos e muitos anos de sua vida. Prosperou, fez dinheiro, faliu, levantou-se de novo. E, mesmo assim, não era comum vê-lo emburrado ou reclamando.

Ah, e como esquecer dos cochilos do meio da tarde, da paixão pelas novelas… Descobri praticamente adulta que não existia uma cidade no caminho de Gravatá chamada “Dois Leões”. Fiquei em choque. Como assim, voinho?

Ansiosa que sempre fui, passava as duas horas que levávamos viajando até Gravatá perguntando o itinerário, cidade por cidade. Eu só parava de aperrear quando avistava a icônica garrafa da Pitú que tinha na BR-232, era sinal de que a gente estava perto. Até aí, haja história pra inventar num mundo onde criança não tinha internet.

A prova da criatividade do Janja eram os macacos na árvore que todos os seus netos juraram ter visto na infância. Ah, o famosíssimo Chicão! Sem falar que todo mundo que cruzava seu caminho ganhava um apelido engraçado/carinhoso. O meu era Boró.

Corta para maio de 2021. Manhã do Dia das Mães. Tomei café, resolvi algumas coisas por telefone. Deixei meu filho em casa, brincando com minha mãe e minha sogra, avós mais que presentes. Duas jóias que amam meu filho incondicionalmente, e que dia após dia seguem a sequência de amor, construindo boas memórias com o meu pequeno.

Agora era eu que precisaria dar adeus ao meu avô. Ele partiu muito rápido, mais uma vítima da pandemia. Recebi a notícia de sua morte sozinha, num corredor frio de hospital, naquela madrugada. E assim precisou ser até o momento do adeus.

As circunstâncias da nossa vida atual não permitiram unir a família, como já fizemos tantas e tantas vezes. Precisava administrar as informações com meu pai e tios, cuidar da partida de vovô. Não quero descrever o que presenciei de triste nessas últimas horas. Deixei tudo ali, quando depositei uma rosa em cima da urna que guardava a jóia que foi meu avô durante sua vida.

Janja, obrigada por tudo. Tenho certeza que a espiritualidade te recebeu com a leveza que você sempre prezou. Sei que tu e Lili vão estar, quem sabe, de mãos dadas fazendo aquelas caminhadas pela praia, ou jogando baralho em alguma salinha emprestada por papai do céu. Fica bem, te amamos para sempre.

Um beijo, Boró.

Bruna é jornalista e trabalha na assessoria de comunicação da Secretaria de Desenvolvimento de Pernambuco*

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