Por Estadão
Uma fabricante de sorvetes, uma mercearia de bairro especializada em queijo e uma locadora de veículos estão entre as vencedoras do leilão promovido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a compra de 263 mil toneladas de arroz. Concluído nesta quinta-feira (06), o certame foi realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a importação de 263,37 mil toneladas do grão, ao preço de R$ 1,31 bilhão. Procurada, a Conab disse que não conhece, durante o leilão, quais são as empresas participantes e que os nomes delas só aparecem depois de fechada a operação.
O objetivo do governo é conter o aumento de preços do arroz – cultura realizada principalmente no Rio Grande do Sul e atingida pelas inundações que castigaram o Estado no mês passado. Os produtores e beneficiadores de arroz questionam a iniciativa, alegando que há oferta de arroz no mercado brasileiro e que o governo fará uma intervenção em toda a cadeia, uma vez que além da importação fará a venda do arroz com marca própria nos supermercados.
Das quatro empresas vencedoras do leilão de ontem, apenas uma – a Zafira Trading – é uma empresa do ramo. A empresa atua no comércio exterior desde 2010 e ganhou o direito de vender 73,8 mil toneladas de arroz, a R$ 368,9 milhões – o montante corresponde a 28% do total negociado no leilão. O Tribunal de Contas da União (TCU) foi acionado pelo partido Novo para apurar e suspender o resultado do leilão.
A maior fatia foi arrematada por uma mercearia de bairro de Macapá (AP). Ao todo, a Wisley A. de Sousa LTDA, cujo nome fantasia é “Queijo Minas”, ganhou o direito de vender 147,3 mil toneladas de arroz para a Conab, ao preço de R$ 736,2 milhões. Por meio de seus advogados, a empresa disse ter condições de cumprir o edital.
A Icefruit, uma empresa cuja sede fica em Tatuí (SP), arrematou dois lotes do leilão, oferecendo 19,7 mil toneladas de arroz à Conab por cerca de R$ 98 milhões. Pelo cadastro na Receita Federal, é uma empresa média, cuja primeira atividade é a produção de conservas de frutas, alimentos e sorvetes. Ela também é registrada para atuar no comércio de alimentos.
O dono da empresa é Marco Aurélio Bittencourt Junior, que se tornou sócio no ano passado. Em nota, a empresa informou que tem experiência na importação e exportação de frutas e alimentos e que a operação de venda de arroz para a Conab é um “novo desafio”. “A empresa está com toda documentação em dia, com a carta de garantia e seguro e só vai receber do governo federal após a entrega do produto”, acrescentou.
O terceiro maior lote do leilão ficou com uma locadora de veículos do Distrito Federal, a ASR Locação de Veículos e Máquinas – como o nome diz, o principal negócio da empresa é o aluguel de maquinários. O dono, Crispiniano Espindola Wanderley, presidiu uma cooperativa de transportes públicos no Distrito Federal de 2002 a 2009. Citado em um inquérito que tinha como alvo o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF), Wanderley disse em depoimento ter pago R$ 350 mil ao político, em vantagem indevida. Condenado num primeiro momento, Fraga acabou inocentado da acusação. A empresa foi procurada pela reportagem do Estadão, mas não retornou até o momento.
Quando foi fundada, em setembro de 2006, a mercearia Queijo Minas possuía capital social de apenas R$ 80 mil. No mesmo dia do anúncio do leilão pelo governo, em 29 de maio deste ano, a empresa alterou seu capital social para R$ 5 milhões, e deixou de ser uma microempresa, de acordo com informações da Junta Comercial do Amapá.
Para garantir o negócio, o empresário Wisley Alves de Sousa, dono da mercearia, terá de pagar uma caução de R$ 36,8 milhões à Conab até a próxima quinta-feira, 13, e ainda dar conta de entregar o produto no Maranhão, em Minas Gerais e em Pernambuco até setembro – e há certo ceticismo em relação a isso.
“No dia 13 a gente vai saber exatamente de quem nós estamos falando. Agora, eu não posso falar sobre quem vai ou quem não vai entregar o produto. Eu só tenho uma certeza que eu posso falar para você: a Conab vai fazer três fiscalizações. Prejuízo financeiro para o governo não vai ter nenhum”, afirmou o diretor de Operações e Abastecimento da Conab, Thiago dos Santos.
O capital social é uma estimativa feita pelos sócios de uma empresa do valor necessário para iniciar as operações, e não se confunde com a capacidade de pagamento da firma.
Outro dado que sugere a falta de capacidade da Queijo Minas para concluir o negócio aparece em uma ação de execução fiscal contra a empresa, iniciada em meados de 2022 pela Secretaria da Fazenda do Amapá. O governo local cobrava supostos débitos de ICMS não recolhido pela firma, no montante de R$ 825,9 mil. Com juros, multa e correção, o valor chegou a R$ 2,9 milhões, nos cálculos da Fazenda Estadual – o valor é contestado pelos advogados da firma.
No processo, que foi suspenso em maio passado, os advogados pedem (em agosto de 2022) que a Justiça reduza o pagamento inicial das custas processuais, pois a empresa não poderia arcar naquele momento com o pagamento de R$ 26,7 mil em custas.
“A embargante não tem condições financeiras para custear o total das custas sem prejudicar o funcionamento da empresa, como por exemplo o pagamento de funcionários, posto que, agora que efetivamente a empresa voltou ao regular funcionamento em virtude de passar toda a pandemia fechada”, diz um trecho.
À reportagem, o advogado Riano Valente Freire, que representa a empresa, disse que as custas já foram pagas e que a Queijo Minas terá condições de cumprir com o edital. “A empresa tem total condição de arcar com todos os custos da operação e de cumprir o previsto no edital”, disse o advogado, por e-mail.
Wisley Alves de Sousa já foi ouvido em um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que apurou possíveis crimes de fraude a licitação e desvio de verbas públicas por parte do ex-deputado federal Roberto Góes, na época em que o político era prefeito de Macapá (AP). Uma investigação do Tribunal de Contas do Amapá encontrou “indícios de sobrepreço na aquisição de utensílios de cozinha” para a Secretaria de Educação da prefeitura, na gestão de Góes, em 2010.
Na ocasião, a empresa de Wisley, que se chamava Distribuidora Premium, acabou contratada por R$ 352 mil pela Secretaria de Educação para fornecer os equipamentos. O Tribunal de Contas do Estado apurou sobrepreço, isto é, pagamentos inflados, no valor de R$ 113,6 mil. Durante a investigação no STF, a licitação foi reexaminada pelo Instituto Nacional de Criminalística (INC), ligado à Polícia Federal, que “confirmou a ocorrência de sobrepreço em 17 itens do Pregão (…), na ordem de R$ 172.939,85″.
Iniciada em 2015, o caso foi arquivado no STF em 2018, a pedido da então procuradora-geral da República Raquel Dodge – mas apenas porque não ficou provada a participação de Roberto Góes na fraude da licitação. “Apesar de comprovada a materialidade, o inquérito policial não reuniu provas da participação do congressista nos ilícitos apurados”, escreveu Dodge. Atualmente, Roberto Góes é deputado estadual no Amapá pelo União Brasil e vice-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
As três empresas não costumam participar dos leilões da Conab – a ASR apareceu em um leilão no ano passado, organizado pela estatal para a venda de milho em uma operação para o governo da Bahia.
A Conab alega que as vendas foram feitas por meio das bolsas de alimentos, a Bolsa de Mercadorias do Mato Grosso (BMT) e a Bolsa de Cereais e Mercadorias de Londrina, que cadastraram as empresas interessadas em fazer ofertas de arroz importado ao governo federal.
Caso elas não apresentem até a próxima quinta-feira uma garantia equivalente a 5% do valor ofertado, serão multadas em 10% do valor da operação e banidas por dois anos dos leilões da Conab. As bolsas que as representaram no leilão também deverão ser punidas.