Editorial Estadão
A correlação entre um Estado de Direito vigoroso e o desenvolvimento econômico, social e cultural é intuitiva e bem documentada. De um sistema de Justiça eficiente e equânime dependem a produtividade e a estabilidade dos negócios, a proteção de direitos individuais e a resolução de conflitos sociais. Mas a Justiça brasileira é lenta, cara e privilegiada. Três levantamentos publicados desde dezembro oferecem uma biópsia dessa Justiça triplamente injusta.
Segundo o Rule of Law Index (Índice do Estado de Direito), do World Justice Project, que mede anualmente a percepção da população e especialistas, o Brasil ocupa o 80.º lugar no ranking entre 142 países – entre os 32 latino-americanos, está na 17.ª posição. Os brasileiros acusam em seu sistema discriminação, influência do governo, morosidade e baixa aplicação das decisões. A Justiça criminal é especialmente mal avaliada. No quesito imparcialidade, é a segunda pior do mundo, só atrás da Venezuela.
Um levantamento do Movimento Pessoas à Frente sobre “supersalários” no funcionalismo federal registra que as despesas acima do teto constitucional só do Judiciário e Ministério Público custaram R$ 11,1 bilhões em 2023. Mais de 90% dos magistrados e procuradores recebem acima do teto. No Legislativo e Executivo esse índice não chega a 1%.
“O que a gente observa é o quanto essas carreiras jurídicas criam uma realidade paralela”, disse à Folha de S.Paulo a diretora da Plataforma Justa, Luciana Zaffalon. “Não importa o cenário, crise, contexto, estão sempre ficando com uma fatia cada vez maior do Orçamento público.” A análise é corroborada por um levantamento em 18 Estados. Entre 2022 e 2023, os gastos com a Justiça em Mato Grosso, por exemplo, aumentaram 36%, enquanto os gastos totais cresceram só 11%. Na Bahia, subiram 18%, ante alta de 8% nos gastos totais, e em Minas Gerais aumentaram 30%, ante apenas 3% nos gastos totais.
Segundo o Tesouro, o Brasil tem o Judiciário mais caro do mundo, consumindo 1,6% do PIB, enquanto a média dos emergentes é de 0,5%, e a dos países desenvolvidos, 0,3%. Ainda assim, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, diz que “o Judiciário não tem participação nem responsabilidade sobre a crise fiscal” do País. À custa de chantagens, representantes corporativos procuram barrar tentativas de limitar os supersalários ou a discricionariedade da Justiça para criar novos benefícios.
Do ponto de vista moral, as manobras da casta togada para acumular privilégios são o mais maligno dos tumores, mas do ponto de vista fiscal são um fator menor, mais sintoma do que causa do problema.
Na comparação internacional, há uma quantidade aberrante de servidores da Justiça para atender a uma litigiosidade igualmente aberrante, especialmente nos campos trabalhista e tributário. Entre as disfunções no ecossistema judicial que encarecem a Justiça estão demandas repetitivas, excesso de instâncias recursais, decisões contraditórias, desrespeito a precedentes ou baixa predisposição a mecanismos alternativos de resolução, como arbitragem e mediação.
Já em 2018 um celebrado jurista alertava a um congresso de advogados para a necessidade da responsabilidade fiscal – “gastar prolongadamente mais do que se arrecada produz duas consequências: inflação e juros” – e conclamava os juízes a mudar sua mentalidade para que a Justiça se “desjudicializasse”. O “juiz típico (…) acha que o trabalho é produzir uma sentença, quando o papel deveria ser evitar se chegar à sentença e acabar (o processo) antes”, dizia. “(Há) um sistema processual, que, em toda parte, e inclusive no Supremo, faz com que as pessoas tenham a cultura da procrastinação. Continuo a incluir na agenda para o futuro mudanças relevantes ao sistema de Justiça. Custamos caro e somos ineficientes.” O jurista autor dessas ponderações corretas se chama Luís Roberto Barroso. Mas, ao que parece, a “agenda para o futuro” não só foi procrastinada, mas subvertida.
“Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, dizia Ruy Barbosa. Cem anos depois, a advertência não só é mais atual do que nunca, mas precisaria ser complementada. Justiça perdulária não é Justiça. Justiça privilegiada é ainda menos.