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Guerra comercial: Ingresso da China na OMS em 2021 deixou maioria dos países agarrados em ‘botes furados’

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Foto: reprodução

Por Jefferson Vieira*

Os críticos do “Dia da Libertação” de Trump anunciam um desastre iminente, mas o que parece prestes a ruir são as suas ilusões, não a realidade. A arena do comércio exterior está longe de ser uma utopia de livre mercado em equilíbrio: trata-se, na verdade, de um oligopólio comandado por EUA, China e União Europeia – dominando a maior fatia do comércio de bens e serviços, com o dólar conferindo aos Estados Unidos uma vantagem inquestionável em qualquer disputa comercial.

Esses alarmistas do senso comum se desesperam, lamentando a destruição de um mundo de fantasia em que cada nação supostamente negocia em pé de igualdade, todas observando as mesmas regras, como se vivêssemos numa aldeia global.

Na vida real, estamos presos a uma distopia em que o declínio da produtividade global é encoberto por uma nuvem tóxica de trabalho quase escravo em países subdesenvolvidos absorvendo o excesso de liquidez do mundo desenvolvido, tudo sustentado por um endividamento explosivo a ser pago pelas futuras gerações.

O ingresso da China na Organização Mundial do Comércio, lá em 2001, durante a Rodada de Doha, prometia uma maré de prosperidade que elevaria todos os barcos; em vez disso, nos deu alguns poucos iates de luxo, deixando a maioria agarrada a botes furados.

Um quarto de século depois, as tarifas de Trump não são uma rejeição do livre comércio, mas o reconhecimento de que nosso sistema atual está longe de ser livre. Ele joga por terra a fantasia de competição perfeita e abraça a realidade bruta do poder monopolista.

Do eleitor mais reacionário de Donald Trump ao mais radical apoiador de Bernie Sanders, uma grande parcela dos americanos há muito sente que algo estava profundamente errado na política de déficits comerciais adotada por seus diversos governos – ainda que os especialistas insistissem que tudo ia muito bem, obrigado.

No fundo, como pontua o secretário do Tesouro, Scott Bessent, o sonho americano jamais se baseou em entulhar a casa com quinquilharias baratas, e sim em garantir um modo de vida digno, com mobilidade social e estabilidade.

Para o trabalhador que viu a fábrica fechar, o emprego sumir e as dívidas se acumularem, bugigangas em promoção não servem de consolo para as oportunidades perdidas. Não espanta, portanto, o desprezo popular diante dos especialistas que carimbam as ideias de Trump como “perigosas”. Talvez o real perigo seja para a reputação desses mesmos especialistas, caso o plano de Trump dê certo — mas esse é um risco que muitos estão dispostos a correr.

O governo americano admite que as tarifas podem resultar num “ajuste pontual de preços” — um eufemismo para inflação de curto prazo — mas alega que esse custo é um investimento no futuro do país. Há aí um realismo nu e cru, quase uma mentalidade de classe trabalhadora: a aposta é que as pessoas toparão pagar um pouco mais caro por certos produtos se isso significar o retorno de bons empregos e o fortalecimento das comunidades.

As comparações entre o plano de Trump e a famigerada Lei Tarifária Smoot-Hawley de 1930 (apontada como uma das culpadas pela Grande Depressão) só reforçam o quanto seus críticos parecem desconectados da realidade: os EUA não são mais um coadjuvante no comércio internacional, como eram na época, mas sim o maior consumidor de um mercado global cada vez mais favorável aos compradores – uma posição que lhe permite ditar os termos de troca com maior facilidade.

Os alertas de recessão iminente partem da ideia de que a indústria americana irá simplesmente engolir os custos mais altos sem reagir, enquanto os demais países se ajustariam facilmente entre si, fugindo das tarifas ianques. Mas, se os EUA acumulam déficits com várias nações, é porque essas economias dependem do mercado americano para crescer. Se elas mandarem os EUA passear, perdem seu maior freguês. Os EUA não são uma pequena ilha prestes a se isolar do restante do mundo.

Na prática, já vemos sinais do que Trump previa: dezenas de países correm para negociar, rever tarifas e garantir acesso ao mercado americano. Fábricas que planejavam ir embora estão revendo a decisão, e todos os dias temos anúncios de novos investimentos estrangeiros em solo americano. O objetivo é exatamente esse: usar o poder de monopólio para mudar comportamentos.

Em uma coisa os críticos acertam: tarifas são impostos que acabam repassados ao preço final. No entanto, os preços também servem como incentivos, atraindo investimentos para os EUA, onde as condições se tornaram comparativamente mais favoráveis.

Quem imagina que haverá retaliação ou fuga em massa dos parceiros comerciais precisa se perguntar: vão correr para a China? Pode apostar que Pequim continuará a impor suas próprias tarifas pesadas e manipulações cambiais, jogando mais duro do que o próprio Trump.

Além disso, com tarifas mais altas nos EUA, a China será forçada a exportar para outros mercados, inundando-os com produtos baratos que podem aniquilar indústrias e empregos locais rapidamente. Isso, por sua vez, aumentaria o interesse de outros países em negociar um acordo com os EUA.

Não esqueçamos que os EUA têm uma carta na manga: a dominância do dólar como moeda de reserva mundial no sistema financeiro global. Se o caldo realmente entornar, os EUA podem recorrer a ferramentas que vão de sanções a intervenções cambiais – instrumentos contra os quais outros países simplesmente não conseguem retaliar. Torcemos para não chegar a esse extremo, mas só a possibilidade desse cenário já reforça consideravelmente a posição americana.

As tarifas de Trump não marcam o início de uma guerra comercial, mas o fim de uma guerra silenciosa que há décadas prejudica os trabalhadores americanos. Embora traga riscos, a alternativa — um contínuo declínio econômico — é uma certeza alta demais para se tolerar.

*Jefferson Vieira é economista com uma década de experiência no mercado financeiro e em organizações multilaterais, baseado na Europa

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