
Por Geraldo Eugênio
Os programas de transferência de renda para a população mais carente não são algo novo. Seu formato moderno teve início no segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, tendo à frente a figura inspiradora da socióloga e primeira-dama Ruth Cardoso. Aqui no Semiárido nordestino, quando ocorria uma seca, além da correria pelos carros-pipa, era comum ver a chegada das frentes de emergência e das cestas básicas — estas últimas, uma alternativa cara, de logística difícil e com baixa efetividade. Certamente, uma grande parte dessa ajuda se perdia no percurso entre a decisão e a casa do necessitado. Um grande avanço se deu quando Raul Jungmann, jovem ministro do MDA que contava com a simpatia do presidente e de dona Ruth, propôs que, em vez de cestas de alimentos, fosse distribuído o valor diretamente em uma conta bancária. Assim, o beneficiário poderia portar um cartão de crédito e comprar o que quisesse ou necessitasse.
No primeiro momento a ideia foi recebida com ceticismo. Colocar dinheiro na mão dessas pessoas seria incentivar o desvio para a compra de bebida e outros fins menos nobres e, certamente, não ajudaria em nada o combate à fome. Mesmo assim foi implantado este sistema e, por incrível que pareça, viu-se que dava certo. Antes das ações oficiais, o Brasil contou com a incansável luta de Herbert de Souza, o Betinho. Quem não se lembra dele, o apóstolo da erradicação da fome no Brasil que em 1980 fundou o Ibase e, na década de 1990, tornou-se símbolo de cidadania no Brasil ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, a campanha contra a fome.
O fato é que hoje ao redor de 20,4 milhões de pessoas são cadastradas no programa Bolsa Família, o que representa uma população ao redor de setenta milhões de brasileiros. Parece uma anomalia mas esta é a foto do Brasil real. A luta permanente deve ser em promover a eliminação de famintos e ao mesmo tempo fazer com que as pessoas não dependam desse benefício, parece contraditório. O valor recebido mensalmente por essas famílias varia entre seiscentos e um mil reais dependendo do número de crianças. Em alguns estados este valor é acrescido por uma bolsa complementar dos governos estaduais.
Aí se cria uma situação de questionamento. Como um cidadão que está assinando sua carteira de trabalho e recebendo um salário-mínimo no valor de um mil e quinhentos reais pode querer trabalhar se há um auxílio que o permite ganhar um mil sem maiores compromissos e podendo completar uma remuneração bem maior na informalidade? Esta é uma questão a ser avaliada por qualquer que seja o governo, independentemente da ideologia e conciliar formas de combater a fome sem limitar a gana por crescimento que tem dentro de cada um.
Por outro lado é importante que fique claro que são os programas de transferência direta do governo federal com um complemento menor dos governos estaduais e o emprego público, aí se inclui o municipal que faz a máquina da economia girar na maioria dos municípios brasileiros. Sem esta renda circulante no comércio local o caos estaria se estabelecendo. Afinal, o recurso dos programas sociais é gasto localmente, não são usados em viagens ao exterior, na compra de produtos sofisticados ou em compras online, por incrível que pareça. Logo, muitos detratores dessa ação esquecem que seus negócios pereceriam sem ela.
O gato, hoje um negócio oficializado
Apesar do cenário descrito acima, o êxodo do trabalhador nordestino para atender demandas mais remuneradas continua em grande intensidade. Seja para cortar cana-de-açúcar em Alagoas, Mato Grosso, São Paulo e Minas Gerais ou para plantar e colher cebola em Santa Catarina ou até para a construção civil em São Paulo e em cidades do Sudeste e do Centro-Oeste. São milhões de nordestinos que se deslocam todos os anos. Hoje pela manhã, em nossa caminhada em Serra Talhada, fui informado pelo amigo Kleber Nata, um dinâmico empresário de origem da cidade de Triunfo, que ao redor de um mil e quinhentos trabalhadores haviam sido arregimentados por intermediários, antigos gatos, em uma única semana em Triunfo, um município com menos de vinte mil habitantes.
Conheço um estudante de um município do Sertão do Pajeú que passou toda sua infância e adolescência vendo o pai passar a maior parte do tempo em São Paulo ou no Paraná trabalhando na construção civil.
Remunerações melhores
O que provoca este êxodo? Em primeiro lugar a falta de oportunidade na região, especialmente em anos de seca como o que se testemunha em 2025, seguindo-se de uma melhor remuneração ofertada pelos empregadores que os agenciam e contratam. Espera-se que a maioria receba um tratamento digno e diferente do trabalho escravo ou similar que prevalecia até pouco tempo, mas que continua sendo a realidade do Nordeste.Há alguma opção para se limitar este modelo exportador de mão de obra barata. Seja na Índia, Paquistão, Bangladesh ou Ouricuri. A principal iniciativa seria a criação de novas oportunidades e a dinamização da economia que já se encontra em movimento mas não o suficiente para apoiar a todos. Voltando às discussões anteriores, a diferença de hoje para algum tempo atrás é que a região conta com jovens qualificados ansiosos por uma oportunidade. Provavelmente, pela formação e pelo sistema de educação que se exerce, a maioria sonhando com um emprego público. Esta opção não é passível de ser alcançada uma vez que por mais dilatadas que sejam as folhas de pagamento das prefeituras do interior não haverá lugar para todos e, os postos melhor remunerados obrigatoriamente advêm de concursos, o que significa que uma fração muito pequena poderá ser absorvida.
Resta o apoio ao empresariado local, seja ele em que área for, a opção por áreas inovadoras e um programa nacional de suporte à criação de novas empresas tendo esses jovens como sócios. Há muitos talentos que não estão sendo devidamente utilizados pela nação e que sem o aproveitamento dessa inteligência disponível todo o esforço para educar será comprometido.
O sonho da moto
E para os que não contam com uma formação qualificada cujo sonho de consumo é uma moto, o que fazer? Não se criam milhões de postos de serviço em um piscar de olhos, mas sem se incentivar o estabelecimento de milhares de empresas continuaremos a ver milhões de nordestinos nesse deslocamento secular, hoje mais fácil e mais ágil, mas que não seria a melhor recomendação para nossa sociedade.
*Professor Titular da UFRPE-UAST