A China nutre a ambição de exportar seu modelo político, como “superior” à democracia, e usa os Brics e a Nova Rota da Seda para projetar sua influência
Por Lourival Sant’Anna*
O Brasil é um caso raro de democracia que se recuperou ultimamente. A avaliação é do cientista político sueco Staffan Lindberg, diretor do Instituto V-Dem, que estuda democracias ao redor do mundo. Em 2020, Lindberg previu que a democracia americana não resistiria a um segundo mandato de Donald Trump. Em entrevista exclusiva, ele analisou também as causas da degradação da democracia na Europa e seu impacto geopolítico.
“O Brasil, de acordo com a nossa métrica, foi ladeira abaixo no período de Jair Bolsonaro e ficou muito próximo de perder o status de democracia”, recorda o professor. “E subiu de volta depois. É um dos poucos casos no mundo que em tempos recentes vivem uma retomada da democracia, ao lado da Polônia, Zâmbia, Lesoto e Seicheles. Foi notável e muito positivo para o mundo.”
Lindberg, que veio ao Brasil a convite da Fapesp e do CNPq para um seminário da Fundação FHC, reconhece o “desafio” que o País enfrenta no momento, de investigar um ex-presidente e 35 outras pessoas, “especialmente militares, um grupo tão sensível pelo papel que desempenhou no passado”.
O copo está meio vazio ou meio cheio, considerando a tentativa de reverter uma derrota eleitoral e a capacidade das instituições de proteger a democracia? “A recusa de apoio de atores significativos do establishment militar e a resistência da Justiça eleitoral são sinais de força da democracia”, avalia Lindberg.
Ele identifica outro sinal positivo na formação de uma “coalizão diversa em torno de Lula, demonstrando que a democracia é mais importante do que preferências políticas”. O especialista cita ainda que “o Brasil foi bem melhor do que democracias estabelecidas em enfrentar a desinformação”.
Lindberg assinala que a comunidade internacional ajudou, ao reconhecer imediatamente o resultado da eleição e sinalizar para os militares que não ficaria feliz com um eventual golpe.
Fazendo um balanço, ele acha que o período Bolsonaro “foi sinal de fraqueza, mas depois a atitude de que isso não pode acontecer de novo e de que o Brasil foi vacinado” são sinais de força. “A questão é como a partir daqui endereçar essas fragilidades.”
‘Imagem manchada’
Em contrapartida, o especialista considera que “a imagem de Lula está manchada por seu apoio a Xi Jinping e a Vladimir Putin”, e por sua atuação nos Brics. Com a entrada de países como Arábia Saudita e Irã, os Brics “despencaram” no ranking de democracia do V-Dem no ano passado. “Eu tinha esperança de que Lula assumisse uma posição mais forte em favor da democracia e dos direitos humanos.”
Quatro anos depois de sua previsão sinistra, Lindberg considera ainda maior a ameaça imposta por Trump à democracia americana. “Trump e seu pessoal tiveram quatro anos para se preparar”, observa ele. “Têm completo controle do Partido Republicano e se tornaram quase um grupo religioso. Há muito poucos críticos na bancada republicana no Congresso e ninguém sobrou na liderança do partido.”
A Corte Suprema tem maioria conservadora de 6 a 3, metade nomeada por Trump. Mesmo antes da eleição, a Corte decidiu que o ex-presidente tinha imunidade contra processos criminais.
Lindberg recorda as frases de Trump, de que “seria um ditador no primeiro dia”, os eleitores não precisariam mais votar se o elegessem dessa vez, e usaria o Departamento de Justiça para perseguir seus adversários, além dos sinais de que pretende politizar as Forças Armadas. “Isso é um ditador”, conclui.
Quanto aos outros freios e contrapesos, Lindberg vê sinais de enfraquecimento da imprensa, por exemplo no veto de Jeff Bezos, dono da Amazon e do The Washington Post, a uma declaração de apoio do jornal a Kamala Harris. “Resta a sociedade civil, que tem um histórico de mobilizar multidões nas ruas”, diz ele. “Tenho certeza de que algo assim acontecerá. Será suficiente? Não sei.”
Na Europa, as causas da desvalorização da democracia são várias, analisa Lindberg. Desde que chegou ao poder, em 2000, Putin lançou campanhas de desinformação, apoiou o Brexit e financiou a ultra-direita da França, Suécia e Hungria, entre outras.
“Temos também crescente evidência de aumento da desigualdade socioeconômica”, diz ele. “Muitos estudos mostram que pessoas que perderam com a crise financeira de 2008, a pandemia, que sentem que o futuro é pior que o passado, têm muito mais probabilidade de votar em extremistas, em favor da glória da nação.”
Nesse ambiente, a China nutre a ambição de exportar seu modelo político, como “superior” à democracia, e usa os Brics e a Nova Rota da Seda para projetar sua influência.
*Colunista do ‘Estadão’ e analista de assuntos internacionais da CNN