Editorial Estadão
O plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) tomou a correta decisão de bloquear os recursos do Pé-de-Meia por entender que o modelo de financiamento do programa do Ministério da Educação (MEC) viola o processo orçamentário. Em outras palavras: para tentar cumprir suas metas fiscais, o governo Lula da Silva tem custeado o Pé-de-Meia por meio de uma gambiarra financeira, à margem do devido escrutínio do Congresso.
Criado no ano passado, o Pé-de-Meia consiste na formação de uma poupança para os alunos do ensino médio da rede pública que sejam beneficiários do Cadastro Único para Programas Sociais. O objetivo do MEC é incentivar a permanência desses estudantes em sala de aula durante toda essa fase da aprendizagem. Comprovadas matrícula e frequência escolar, o aluno recebe um pagamento mensal de R$ 200. Ao final de cada ano letivo concluído, recebe mais R$ 1 mil de bônus, além de um adicional de R$ 200 por participação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Como se vê, é um programa de interesse público, razão pela qual o governo, se crê em seu valor, como se supõe, deveria ser o primeiro a lutar por sua inclusão no Orçamento, negociando no Congresso a priorização do Pé-de-Meia sobre outros gastos públicos.
Instituído pela Lei no 14.818/24, o Pé-de-Meia tem sido financiado com recursos do Fundo de Custeio da Poupança de Incentivo à Permanência e Conclusão Escolar para Estudantes do Ensino Médio (Fipem), que por sua vez é composto por aportes administrados pela Caixa Econômica Federal, sendo os da União os mais vultosos. Em boa hora, o Ministério Público junto ao TCU advertiu que “a legislação que criou o programa permite à União transferir recursos a esse fundo, porém ela não permite que o pagamento dos incentivos aos estudantes com recursos depositados no Fipem se dê à margem do Orçamento”. O procurador Lucas Furtado ainda alertou que “essa prática está travestida de um fundo privado a fim de se manter tangente às regras das finanças públicas”, vale dizer, insubmissas ao controle republicano dos gastos do governo pelo Poder Legislativo.
Eis a essência da democracia. Recursos públicos, oriundos da tributação de cidadãos e empresas, devem ser destinados ao financiamento de políticas voltadas ao progresso humano, social e econômico de uma nação. Em suma, ao bem comum. O debate em torno de quais políticas atendem ou não a esse imperativo – e, portanto, são dignas dos recursos dos contribuintes – deve ser travado pela sociedade por meio de seus representantes eleitos, com absoluta transparência, espírito público e senso de prioridade, pois dinheiro não dá em árvore. Quando governos buscam meios exóticos para financiar suas ações, sem submetê-las a esse crivo republicano, acabam por mascarar o real estado dos gastos públicos e por abastardar a própria democracia representativa.
Em justiça ao atual governo, deve-se registrar que Lula da Silva não é o único que tem o cacoete de driblar o Orçamento quando lhe convém. Jair Bolsonaro fez letra morta de decisões judiciais definitivas ao dar calote no pagamento dos precatórios e furou o teto de gastos ao menos duas vezes em um ano para aumentar o pagamento do Auxílio Brasil e da ajuda financeira a caminhoneiros e taxistas, para citar apenas dois outros exemplos recentes de desrespeito gritante à peça orçamentária. Não é assim que se governa uma República democrática.
O TCU teve o cuidado de não se imiscuir no mérito do programa Pé-de-Meia, haja vista que a formulação de políticas públicas, evidentemente, é prerrogativa dos Poderes Executivo e Legislativo. Mas a Corte de Contas lançou luz sobre mais uma manobra sub-reptícia que, ao fim e ao cabo, rebaixa o Orçamento a uma burocracia qualquer. Se o governo Lula da Silva trata o cumprimento do Orçamento como mera formalidade que, a depender de suas conveniências, pode ser ignorada, alguém haveria de lembrá-lo do contrário. E que bom para o País que o TCU o tenha feito, resguardando não apenas a higidez das finanças públicas, como também a própria materialização da democracia consubstanciada na peça orçamentária.