Por Adrilles Jorge
Sepultar os mortos é um direito à dignidade humana. Dois mil e vinte morreu. Mas seu cadáver insepulto ainda apodrece a olhos vistos. Nunca se pensou que a nova regra moral seria não tocar nem ver as pessoas que amamos. Sermos condenados pela proximidade do afeto, por medo da morte. Por medo de um vírus; medo do risco de viver e de amar de corpo presente. Alguns médicos e cientistas insistem em supostas medidas que chamam de civilizatórias, mesmo após a vacina em 2021. Sem aglomerações, sem encontros em espaços fechados. Ninguém obedece, claro. Fingem obedecer por medo e autoengano. Bares, restaurantes, casas cheias no Natal e no Réveillon são pequenas aglomerações afetivas. Cinquenta pessoas em dez coletivos distribuem tantos riscos quanto uma festa de 500 pessoas. Ninguém pensa nisso. Ninguém finge pensar quando impelido por uma autocracia do medo. O cadáver insepulto de 2020 segue vivo, como um zumbi.
Os zumbis isolacionistas seguem sua sanha de pavor e hipocrisia, mas talvez ressuscitem pela própria descoberta de seus atos contraditórios, que cutucam a liberdade sufocada. Ato falho libertário: o hipócrita covarde mata sobretudo a si mesmo. Torço para que Felipe Neto enterre sua hipocrisia de apontar e matar a reputação de pessoas que ousam viver e se arriscar a amar, quando ele mesmo é apontado jogando seu futebol cotidiano com amigos; torço para que a ex-BBB Thelminha, isolada em sua sua ilha de luxo, que pediu a todos que morressem cotidianamente em casa, perceba que o risco de vida no afeto e no trabalho seja um direto também de pessoas que ousam viver, amar e trabalhar. Sobretudo trabalhar a construção dos elos afetivos e de ascensão social, com os devidos riscos calculados, sem necessariamente viver numa ilha isolada de luxo; torço para que cientistas e médicos que arriscaram a errar tanto nas medidas isolacionistas nesta pandemia percebam que medida civilizatória é o risco calculado de se relacionar, amar e tocar quem amamos, de tocar a possibilidade de querer encontrar alguém para amar, de amar a chance de tocar um trabalho, um sustento, uma pessoa, sabendo dos riscos de fracasso, enfrentando os riscos, sem se isolar na própria covardia narcisista de apenas sobreviver aos riscos de realmente viver.
Torço, sobretudo, para que todos aqueles que apontam como genocida aquele que levanta a bandeira da liberdade de arriscar a viver se infectem de alguma ressurreição. Dois mil e vinte ainda exibe seu cadáver insepulto a olhos vistos. O cadáver é feio, mas nos impele a viver. A morte nos aponta a necessidade de abocanhar cada instante de vida, matando nosso medo da morte a cada momento. Enterremos, com distância calculada, nossos medos infundados. A morte nos vence sempre no final, mas o presente tem o sabor da memória da eternidade. Não nos permitamos deixar de arriscar a amar a cada momento em que o medo tente nos dominar, em que a hipocrisia tente nos limitar. Não esqueçamos as lições e enganos do passado para vivermos um futuro melhor, que bate à nossa porta. Basta abri-la. Torço para que 2021 comece de fato. Para que o futuro comece de fato. Em algum momento.
*Comentarista político e colunista da Rádio Jovem Pan