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A arte de destruir estátuas

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Por José Paulo Cavalcanti Filho, em artigo enviado ao blog

Uma estátua de Colombo, por conta do genocídio dos povos nativos americanos, foi decapitada (em Boston). A de Cervantes desfigurada, pintados seus olhos com sangue (São Francisco). A de George Washington acorrentada, pichada e coberta com um capuz branco (Chicago). A de Gandhi, em razão de comentários racistas que fez nos tempos da África do Sul, vandalizada (Leicester). A de Churchill, em frente ao parlamento, pintada com a frase “era um racista” (Londres). Em Portugal, Bloco de Esquerda (no parlamento) e movimentos populares, sob o lema “Descolonizar nossa cultura”, protestam ruidosamente contra Vasco da Gama e o Padre Vieira, o Imperador da Língua Portuguesa, que teriam sido complacentes com a escravatura.

Por toda parte, mitos do passado estão recebendo pesadas críticas de setores sociais organizados. Na internet, para quem interessar, há relação de quase uma centena de estátuas depredadas (list.statues.topple). E tudo é muito discutível. Que nenhuma figura importante sobrevive a uma pesquisa minuciosa sobre tudo que fez ou disse, pela vida. Desde os filósofos gregos. E bom exemplo seria Platão. Para Bertrand Russell (História da Filosofia Ocidental) um “aristocrata”, “abastado”, “fingido”, “a favor da eugenia”, “a quem trato com pouquíssima reverência”. Mesmo expressivas figuras religiosas, basta ler a Bíblia. Proponho um teste, amigo leitor. A partir de citações na obra de um autor consagrado. O desafio é decidir se ele deve ser homenageado ou enxovalhado.

Esse autor, para começar, louvava os homens de posses, “respira-se melhor quando se é rico”. E apoiava a escravatura, “ninguém ainda provou que a abolição da escravatura fosse um bem”. Para ele, Deus é “um velho estúpido e doente, sempre a escarrar no chão e a dizer indecências”. Religião, só “pompa morta à sombra”. Escrevia como um homossexual, declarando ter “vontade de ser a cadela de todos os cães e eles não bastam”. Dizia que os funcionários públicos eram “nomeados para não fazer nada”. Considerava deputados “gado vestido nos currais dos Deuses”. Criticava a mídia, “não pode haver moral no jornalismo. Ora porra! Então a imprensa é esta merda que temos que beber com os olhos?”. E pensava ser, “a democracia, o mais estúpido de todos os mitos”. O leitor ainda estaria disposto a ler, ou elogiar, alguém assim?

Pois bem, senhores. Esse autor é Fernando Pessoa. Maior escritor português. Ele sozinho ou ao lado de Camões, como preferir. Engraçado é que, para quase todas essas frases, podemos também encontrar, na sua obra, outras em sentido contrário. Por exemplo disse, da escravatura, que era “uma maldição, vergonha que com o tempo cresce”. E, em louvor de Deus, escreveu Prece que encerra dizendo: “Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim”. Por ser, o poeta, um ser contraditório. Que vai mudando, a partir do ambiente em que vive. Ou do que sente, em cada momento. Quanto a mim, reitero que jamais deixarei de ler, de me espantar e de reverenciar Fernando Pessoa.

Estátuas e monumentos não deveriam, nunca, ser destruídas. Assim como livros não devem ser queimados. Por funcionar como espelhos do pensamento então vigente. Essas desconstruções não fazem sentido. Mesmo reconhecendo tratar de temas sensíveis, pelo simbolismo que carregam. Devemos refletir se, para conhecer a história, será sempre necessário reescrever essa história em uma nova narrativa. Que para aprender com o passado, tudo sugere, melhor será conhecer bem esse passado. Parte de um patrimônio cultural valioso. Sem contar que derrubar estátuas, ou censurar livros, não muda o mundo no qual vivemos. Para isso melhor solução é menos apartação social, educação de qualidade e, sobretudo, mais democracia.

José Paulo Cavalcanti Filho é jurista.

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