Denunciados por homicídios no caso alegam ter revidado “clarão” de tiros de um “vulto” no poste onde estavam os reféns
Policiais militares que atuaram na madrugada de 7 de dezembro em Milagres falam pela primeira vez desde que foram denunciados por homicídio e fraude processual. No encontro com a reportagem, na presença de um advogado, três PMs dizem só ter agido “dentro da lei”, negam alteração na cena do crime e acusam reféns sobreviventes de terem mentido.
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Naquele dia, ao tentar impedir o roubo de duas agências bancárias da cidade, PMs atuaram e causaram a morte de 14 pessoas, sendo oito assaltantes e seis reféns. No último dia 20 de maio, a Justiça aceitou a denúncia contra 14 militares por sete homicídios e contra outros quatro PMs e o vice-prefeito de Milagres, Abraão Sampaio, por fraude processual.
Durante a entrevista, os militares dizem ter atirado a longa distância em direção ao poste (ao lado do Bradesco, onde estavam os reféns) porque um indivíduo estaria disparando contra a guarnição, embora dissessem não conseguir vê-lo, “só um vulto” e o “clarão” dos disparos que, segundo eles, seria de fuzis. Também negam ter ouvido gritos de Claudineide (refém morta), alegados por várias testemunhas no inquérito processual.
A vez de falar
“O Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais) só se desloca quando a ocorrência é das mais graves que pode existir”, disse um dos militares, para se referir à tropa de elite da PM de que faz parte. Para a entrevista, pediram que seus nomes não fossem revelados, mas reconheceram que os próprios depoimentos seriam sugestivos de identificação, uma vez que o Ministério Público individualiza as denúncias, já fora de sigilo. No encontro, ocorrido em um escritório de advocacia, durante três horas, os militares falaram, com uma bandeira do Brasil e outra do Ceará ao fundo, observados pelo advogado Ricardo Valente Filho, presidente do Conselho da Defesa do Policial da Secretaria de Segurança Pública.
“À medida em que íamos nos aproximando, os tiros eram disparados em nossa direção”. O PM narra sua versão sobre como teria ocorrido a progressão, quando as equipes avançam no território com o objetivo de neutralizar forças inimigas.
O “start”, início da progressão, teria sido após tiros disparados pelos suspeitos de assalto. Estes estariam em frente aos bancos, e os PMs, às 2h do dia 7, em ruas próximas dentro de carros descaracterizados, porque uma viatura oficial chamaria atenção para o que poderia acontecer, já que “o Gate só se desloca quando é ocorrência das mais graves que pode existir”.
Por volta de 23h30 do dia 6, fizeram um reconhecimento da área onde ficam as agências bancárias, oito metros distante uma da outra. Horas antes, ainda em Fortaleza, tiveram a primeira reunião sobre um ataque a banco prestes a acontecer no Cariri, conforme repassou a Coordenadoria de Inteligência (Coin), da Secretaria de Segurança Pública. “Nossa intenção era de captura, de prender aquela quadrilha que já havia causado transtornos em várias cidades” – a última delas seria Abaré, na Bahia, um mês antes, com explosão de banco e fuga, mas sem registros de mortes.
A movimentação do grupo criminoso era acompanhada à espreita pelos militares. “Estávamos usando rádio, não muito, pelo fato de em outra ocorrência que participei o rádio foi rastreado. Ali, estávamos usando o WhatsApp. Uma das equipes informou que os elementos estavam parados em frente ao banco. E ali começaram os disparos. Recordo que as vidraças do Bradesco estavam quebradas, havia o alarme do banco acionado”, diz um dos PMs. Teriam, então descido dos carros para o confronto. “O primeiro disparo que dei foi quando o cara atirou em nossa direção, ao perceber o primeiro policial avançar de uma esquina para outra. Quando ele avançou, foi visto. O cara começou a atirar em direção a ele. Eu ia deixar meu policial ser atingido? Não, eu atirei no bandido”.
Inimigo atrás do poste
Um dos policiais ouvidos pela reportagem afirma ter atirado em um suspeito a partir da área lateral da Prefeitura. “Eu não gritei ‘larga a arma, mão na cabeça, Polícia Militar’, porque antes de eu falar ele atira em mim, não só em mim, mas nos meus companheiros. Fui pra esquina (ao lado da Prefeitura), me abriguei, ele atirou, eu atirei nele. O fuzil do (colega) policial deu pane, ele ficou sem condição de reagir e foi para minha retaguarda, tomei a frente dele e continuei atirando no cara que estava atirando na gente”.
O militar se refere ao inimigo que, segundo ele, estaria atirando de trás do poste ao lado do Bradesco, onde estavam Claudineide, o marido Cícero, o filho Gustavo e seu cunhado João Batista, com o filho Vinícius. Foram todos mortos com vários tiros, mas, no relatório final da Polícia Civil, não há registros do suposto atirador contra os PMs – não foram encontrados, por exemplo, estojos das cápsulas deflagradas.
“A esquina onde as pessoas foram atingidas estava obscura. Eu tinha pouca visibilidade porque, além de estar escuro e chovendo um pouco, estava serenando, a fumaça do Bradesco ocupava toda a esquina”. Questionado sobre o por quê de atirar, já que não via, o PM explica: “o cara atirou em mim e eu pude ver, vislumbrar aquele vulto atrás do poste. Não conseguia enxergar por causa da fumaça. Eu via o clarão da arma naquele momento e atirei lá”.
Um dos policiais afirma que o suposto atirador estava de pé, mas diversas marcas de tiros na parte mais inferior do poste denotam, para a Polícia Civil em relatório final, para alvos deitados no chão.
Os três policiais entrevistados foram unânimes em negar que houvesse gritos de Claudineide. Várias testemunhas ouvidas no processo (tanto reféns sobreviventes quanto moradores vizinhos aos bancos) afirmam ter ouvido gritos de uma mulher. “Se alguém tivesse gritado, tivesse visto, acenado, nós temos rádios, teríamos com certeza avisado”. Outro complementa: “a pessoa, dentro de sua casa, não tá vendo nada, não podia ser um grito de um vizinho?”.
“Eles mentiram”
Reféns que sobreviveram e testemunharam a cena na frente dos bancos, Genário e seu pai Laurentino Fernandes afirmaram em depoimento que os policiais chegaram atirando. Os disparos teriam ocorrido, inclusive, na direção deles. Os militares negam: “eles foram identificados como vítimas e retirados da linha de tiro. Eles mentiram”.
Já passava de 2h30 quando, da esquina da calçada da Farmácia Santa Cecília, os militares olham para a outra esquina em que fica o poste, oito metros distante, e a constatação: “quando cheguei, identifiquei aquelas pessoas, identifiquei logo a mulher. Vi um adolescente, e um senhor respirando. Então as pessoas não estavam mortas. Havia gente viva ali”. Outro complementa: “Não sou médico, sou policial há 22 anos, mas sei identificar quando a pessoa está respirando ou se mexendo. E se ela apresenta algum sinal vital, era até vital que fosse resgatada”.
As imagens das câmeras revelam que, entre a chegada dos PMs à esquina em frente ao poste (por volta de 2h40, portanto, a constatação da presença dos reféns atingidos e possíveis sinais vitais), e o suposto socorro prestado às vítimas na caçamba da Amarok do vice-prefeito, Abraão Sampaio, que chegou às 3h17 e saiu às 3h24, passaram-se mais de 40 minutos. O Hospital Municipal de Milagres fica a 400 metros da cena do crime, ou apenas dois minutos de carro. O PM afirma ter ligado, antes da chegada do vice-prefeito, por três vezes ao serviço 190.
Francisco Erlon, o médico que estava de plantão na unidade hospitalar, afirmou em depoimento que as pessoas que chegaram na caminhoneta já estavam todas mortas, pois nenhum deles foi levado para o atendimento, e sim direto para o necrotério. “Que não chegou a examinar, mas só de olhar viu (que) as lesões eram incompatíveis com vida”, diz no documento.
A morte dos seis reféns abalou os policiais, conforme relataram. “Eu atirei naquele poste. Se eu acertei aquelas pessoas, eu não sei, porque eu não as vi, e não atirei nelas. Se eu matei aquelas pessoas peço perdão a Deus todo dia por essa possibilidade”, diz, em outro momento acrescentando que “até hoje eu faço acompanhamento psicológico. Até hoje choro quando olho meu filho e lembro do rapaz de 14 anos de idade morto na minha frente, no hospital, quando a gente tentou socorrer”.
Ao mesmo policial é perguntado se mudaria a postura, diante do ocorrido. “Eu pensaria muito mais antes de efetuar qualquer disparo. Eu olharia, observaria ao meu redor de uma forma mais cautelosa. Talvez cinco segundos antes de efetuar o primeiro disparo eu tivesse visto, olhado no local um pouco mais eu teria enxergado alguém”. E discorda, mesmo assim, que possa ter errado. “Não posso dizer que houve falha. As consequências da ação não foram as melhores, porque ninguém quer que inocente morra. Os procedimentos adotados foram todos coerentes com o que nós treinamos”.