Editorial Estadão
Um espírito censório vaga pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com desassombro poucas vezes visto sob a égide da Constituição de 1988. Têm sido recorrentes decisões de ministros do STF que cerceiam a liberdade de expressão de cidadãos nas redes sociais, tolhem a publicação de material jornalístico e tiram de circulação livros técnicos ou artísticos. Tudo, claro, sob a iluminação das mais nobres intenções de Suas Excelências – aquelas das quais o inferno está cheio.
Há poucos dias, mais um ato de censura praticado pela Corte responsável pela guarda da “Constituição Cidadã” veio a público, mostrando que o STF parece disposto a abastardá-la no que a democracia tem de mais sagrado.
Em decisão monocrática, o ministro Alexandre de Moraes atendeu a um pedido do notório Eduardo Cunha e ordenou que o livro Diário da Cadeia, escrito por Ricardo Lísias sob o pseudônimo “Eduardo Cunha”, fosse retirado de circulação. Simples assim. Moraes ainda condenou o autor da obra, a Editora Record e Carlos Andreazza – colunista deste jornal e, à época da publicação, em 2017, diretor Editorial do Grupo Record – a pagarem uma indenização de R$ 30 mil ao ex-presidente da Câmara dos Deputados.
O livro, escancaradamente satírico, já apresenta desde a capa, em letras garrafais, a informação de que “Eduardo Cunha” é um pseudônimo do autor. Ademais, ao longo da obra, publicada quando Cunha estava preso no âmbito da Lava Jato por suspeita de exigir e receber US$ 5 milhões de propina em contratos da Petrobras, fica evidente para qualquer pessoa alfabetizada que não se trata de um livro escrito pelo verdadeiro Cunha, mas sim de uma paródia sobre como seriam os dias de cárcere de uma personalidade pública que teve papel destacado na história recente do País.
Ou seja, além de censura, a caneta do sr. Moraes também veio carregada com tintas de preconceito ao supor que os leitores seriam estúpidos a tal ponto que nem sequer poderiam distinguir entre realidade e ficção, donde o acesso à obra deveria ser proibido.
Para o ministro, tido como a epítome da defesa da democracia no País, as liberdades de expressão e criação dos responsáveis pelo livro colidiram, ora vejam, com a proteção à honra de Eduardo Cunha. E, diante desse suposto conflito, Moraes não teve dúvidas: optou por Cunha. Dado seu histórico nada abonador, nem o próprio Eduardo Cunha foi tão zeloso com sua reputação como foi o ministro Moraes. Como se a censura já não fosse grave por si só, o ministro ainda ignorou a jurisprudência do STF, que relativiza o direito à intimidade de personalidades públicas.
Havia outras medidas mais equilibradas e coadunadas com as liberdades democráticas que o sr. Moraes poderia ter tomado antes de tirar uma obra artística de circulação, ato violento em qualquer democracia digna do nome. Ele poderia, por exemplo, ter exigido divulgação ainda maior da informação de que o nome “Eduardo Cunha” é um pseudônimo, malgrado, como foi dito, a palavra vir impressa em caixa alta desde a capa do livro.
Agora, restam o recurso e a dúvida: quem no STF haverá de censurar o censor?