Editorial do Estadão
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, admitiu, em entrevista à CNN, estar preocupado com a trajetória da dívida pública. Embora não seja mais que a simples constatação dos fatos, a declaração traz algum alento, pois mostra que nem todos no governo Lula da Silva estão em estado de negação e acham que tudo não passa de um problema de “comunicação”.
Os dados do ano passado ainda não foram fechados, mas o Tesouro Nacional, no mais recente Relatório de Projeções Fiscais, divulgado em dezembro, estima que a dívida bruta deva atingir 77,7% do PIB. Ainda segundo o órgão, o endividamento bruto deve aumentar até 2028, para 83,1% do PIB, para só então iniciar uma trajetória descendente e recuar a 80,8% do PIB em 2034.
Essas projeções, no entanto, consideram parâmetros defasados, a começar pela taxa básica de juros, que está em 12,25% e deve chegar a 14,25% em março. No mesmo relatório, no entanto, há outra projeção sobre o comportamento da dívida e que considera previsões extraídas do Boletim Focus.
Com base nessas projeções, o mercado financeiro projeta que a dívida bruta deva fechar o ano de 2024 em 78,2% do PIB e subir a 87,7% em 2028 – estimativa superior à do governo, portanto. Nesse cenário, no entanto, o Tesouro Nacional tem uma projeção ainda mais pessimista que a dos investidores e prevê que a dívida bruta alcance 89,8% do PIB em 2028.
Os números demonstram que não há como o ministro negar que a dívida bruta faça parte de suas preocupações. De fato, a solução para qualquer problema passa por um diagnóstico correto, mas isso obviamente não basta. É preciso que essa preocupação se materialize em um compromisso que vá além do discurso e se transforme em ações concretas.
Não foi isso que o esvaziado pacote de corte de gastos do governo representou. E, apesar da insistência dos jornalistas, o ministro não trouxe nada de essencialmente novo na longa entrevista que concedeu à CNN.
É até compreensível que Haddad resista a anunciar medidas que não tenham sido submetidas e aprovadas por Lula da Silva, mas é sintomático que o presidente ainda não tenha percebido que a retomada da confiança dos investidores depende disso, a despeito das cotações do dólar terem superado os R$ 6,00.
Como costuma fazer, Haddad disse que nem sempre as projeções que o mercado faz se confirmam. É verdade, por exemplo, que o crescimento do PIB nos últimos dois anos surpreendeu a maioria dos analistas. Mas, se esse desempenho fosse realmente sustentável, a dívida bruta na proporção do PIB teria de ter caído no mesmo período.
Se a dívida não caiu, foi porque a taxa básica de juros aumentou, ao contrário do que o mercado projetava. A Selic aumentou porque os gastos públicos cresceram mais do que o mercado imaginava. E os gastos cresceram porque uma boa parte deles está vinculada ao comportamento das receitas, que subiram mais do que o mercado imaginava.
Mas o governo não está disposto a reconhecer sua parcela de culpa nessa conjuntura – e, diga-se de passagem, nem mesmo o ministro Haddad. Reeditando o discurso sobre a “herança maldita” que Lula da Silva dizia ter recebido do presidente Fernando Henrique Cardoso, o ministro queixou-se da suposta “bagunça” fiscal deixada pelo governo Jair Bolsonaro, como o calote nos precatórios e a proporção que as emendas parlamentares assumiram no Orçamento-Geral da União.
Mas o governo Lula da Silva ampliou as despesas públicas antes mesmo de assumir, por meio da emenda constitucional da transição. Já no primeiro ano de mandato, o Executivo retomou a política de aumento real do salário mínimo e resgatou o piso constitucional da Saúde e da Educação, sem pensar nas consequências que essas medidas teriam no gasto público e sem considerar o quanto isso enfraqueceria o arcabouço fiscal que ele mesmo propôs.
E é sempre bom lembrar que quem mais contribuiu para desidratar o pacote de gastos no fim do ano passado – motivo da desconfiança do mercado em relação à dívida – foram os próprios ministros do governo e a base do Executivo no Congresso. Um governo assim nem precisa de oposição, pois é quem mais boicota a si mesmo. Sobre isso, por óbvio, o ministro não falou, e nem falará até a eleição presidencial de 2026.