Por J.R. Guzzo
A Polícia Federal e o inquérito do ministro Alexandre de Moraes para investigar um golpe de Estado que o ex-presidente Jair Bolsonaro teria tentado dar, ou pensado em dar, ou se preparado para dar, talvez no fim do ano passado, mais ou menos, parecem ter descoberto a sua pedra filosofal – uma que produz provas, em vez de ouro. É como fazia o nosso querido Bolinha dos tempos que já se foram, quando assumia a sua personalidade de detetive – e sempre descobria, sem falhar uma, que o culpado era o Sr. Palhares, o pai da Luluzinha.
Ele encontrava dentro da geladeira, por exemplo, a fatia do bolo que tinha sumido da mesa. Caso encerrado: era a prova de que o Sr. Palhares tinha escondido o bolo para comer sozinho, provavelmente à noite, pois que outra explicação poderia haver? É como estamos, até agora, com as provas do golpe. Prova, como nas deduções do Bolinha, é tudo, mas tudo mesmo, que o serviço de imprensa da PF declara que é prova – e que entrega para os jornalistas publicarem. É entregar e correr para o abraço. Publica-se qualquer coisa, sem a necessidade de haver nenhum nexo para aquilo que está sendo contado, e tudo vem com o selo de “prova”.
Prova, como nas deduções do Bolinha, é tudo, mas tudo mesmo, que o serviço de imprensa da PF declara que é prova – e que entrega para os jornalistas publicarem.
A pedra filosofal da PF e da mídia é a nova interpretação democrática, ou “consequencialista”, das regras de sintaxe do idioma português. As palavras devem significar não aquilo que realmente significam, mas aquilo que é “justo”, ou “certo”, ou “necessário” dizer – na opinião de quem está dizendo, é claro. Quando a polícia diz “teria acontecido”, por exemplo, a imprensa entende que “aconteceu”. É a mesma coisa com “aparentemente”; se parece, então é. “Possivelmente”, é claro, quer dizer que é possível; se é possível, então é certo.
O único tempo legal do verbo, na linguagem em uso na investigação, é o que se chamava de condicional: seria, poderia, haveria, faria, iria. Também se utiliza, o tempo todo, o “teria feito”, “poderia ter feito” ou “teria tentado fazer” ou, até mesmo, poderia ter “pensado em fazer”, “pensado em tentar fazer” e por aí em diante. Em qualquer caso, significa que “fez”. É a mesma ideia com o uso descontrolado das expressões que integram a linha do “tudo é possível”. É quando entram o “acredita-se”, o “tudo indica”, o “dá a entender”, o “permite deduzir” e coisas da mesma família. Não há restrições nem ao uso dos velhíssimos “trabalha-se com a hipótese”, “não se exclui a possibilidade”, “os cenários possíveis etc.
Uma das joias dessa coroa é a última prova que a PF passou para os jornalistas. Bolsonaro, no fim do mês de dezembro de 2022, remeteu 800 mil reais para os Estados Unidos, onde iria passar os meses seguintes à sua saída da Presidência. Remessa ilegal? Não: remessa regular, pelo Banco Central, que nos últimos catorze meses não apontou nada de errado na transação. Nem poderia ter apontado, pois nesse caso não teria autorizado a transferência. Os recursos eram lícitos, segundo a própria polícia – quer dizer, uma parte “poderia” ser ilícita, mas não se informa quanto, e nem porque seria ilícita.
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“Trabalha-se com a hipótese” de que estariam aí dentro os relógios da Arábia e coisas parecidas – “possivelmente”, é claro. A dedução, da PF e da mídia, é que o objetivo da remessa “seria” pagar as suas despesas enquanto estivesse nos Estados Unidos e o golpe de Estado “estaria” sendo executado no Brasil. Mas porque ele iria para os Estados Unidos justo na hora de dar o golpe? E quanto tempo o golpe iria demorar para ser dado, se ele estava mandando tudo isso para fora – 800 mil reais? Dois meses? Três meses? Quatro? Bem, segundo os policiais e jornalistas, há o “cenário” de que Bolsonaro “estaria” contando com a “possibilidade” do seu golpe não-presencial dar errado; nesse caso, o dinheiro seria para ele se manter em exílio pelo resto da vida.
Que outra explicação poderia haver? Estamos, com certeza, diante de um mistério, dentro de um enigma, cercado por uma charada. Mas se o vídeo da reunião de Bolsonaro falando mal das urnas, como estava cansado de fazer em público, é prova, qual o problema com a remessa dos 800 mil reais? Tudo serve, e tudo é prova – até a prova de que não há nenhuma prova.
J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972.