Por André Uliano / Gazeta do Povo
“Por 4 votos a 1, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu nesta terça-feira (22) condenar o ex-procurador Deltan Dallagnol por danos morais contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na ação, o petista acusa o ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato de violar sua honra e sua imagem numa entrevista à imprensa, em 2016, na qual exibiu uma apresentação de PowerPoint colocando-o no centro de uma organização criminosa.”
Essa, entanto, não foi a primeira decisão do Poder Judiciário sobre o caso. A ação de Lula já havia sido julgada e rejeitada nas instâncias inferiores, compostas majoritariamente por juízes de carreira.
De fato, segundo outra matéria da Gazeta do Povo:
“em dezembro de 2017, o juiz Carlo Mazza Britto Melfi, da 5ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, julgou improcedente a ação de Lula contra Deltan. Afirmou, em síntese e em linha com a defesa do então coordenador da Lava Jato, que as acusações contidas na denúncia deveriam, sim, ser amplamente divulgadas.”
É possível acessar o inteiro teor da sentença, muito bem fundamentada, clicando aqui.
Seguindo com os fatos, o julgamento subiu para o segundo grau, perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, onde houve nova decisão em favor de Deltan. Segue a notícia da Gazeta do Povo:
“Em 2018, Lula recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) contra a decisão que julgou improcedente a ação contra o Powerpoint de Deltan. Em setembro daquele ano, a 8.ª Câmara de Direito Privado manteve a decisão da primeira instância. ‘A divulgação em caráter nacional decorreu da notoriedade do autor e da grande repercussão dos fatos. Inexistência de abuso nas expressões utilizadas na referida divulgação (maestro, comandante) que, aliás, inserem-se no próprio contexto da denúncia perpetrada que acabou sendo recebida e ensejou a prolação de sentença condenatória’, dizia o acórdão da decisão. O recurso ao STJ foi apresentado ainda em 2018, mas rejeitado pelo próprio TJ-SP, a quem cabe a primeira análise sobre sua viabilidade.”
Registro que concordo com a decisão das instâncias inferiores. Inexiste abuso em tornar público conteúdo acusatório, o que inclusive se manifesta como forma de concretizar o dever de transparência. Isso se torna ainda mais justificado em casos de grande repercussão em que exista a tentativa de desconstrução e politização do conteúdo acusatório pelos réus, exigindo uma comunicação mais intensa com a sociedade para explicar as razões de convencimento e da atuação do Ministério Público.
Frise-se, ainda, que no Brasil os juízes de primeiro grau são todos eles concursados. Nos Tribunais de Justiça, por sua vez, 4 a cada 5 desembargadores são magistrados de carreira. Do 1/5 restante, metade vem da advocacia e metade dentre membros do Ministério Público.
Quando chegamos no STJ, o cenário muda de figura. O Presidente da República tem influência sobre a escolha de todos os ministros, sendo que 1/3 deles provêm de membros dos Tribunais de Justiça dos Estados; 1/3 de membros dos Tribunais Regionais Federais; e, 1/3 dentre advogados e membros do Ministério Público.
Atualmente, das 33 vagas de ministros do STJ, 5 foram preenchidas por indicação de FHC, 2 estão temporariamente desocupadas em virtude de aposentadoria, e o restante decorre inteiramente de nomeações de governos do PT.
Voltando à tramitação do processo, após julgamento pelo TJ/SP, ele chegou no STJ, quando o Ministro Luís Felipe Salomão admitiu a tramitação do recurso. Ele foi o relator do caso.
Quando do julgamento da impugnação no STJ, só então o político petista conseguiu reverter a decisão das instâncias anteriores. Quatro dos cinco membros do órgão julgador votaram favoravelmente ao recurso de Lula: Luís Felipe Salomão; Raúl Araújo; Antônio Carlos Ferreira; e, Marco Buzzi.
Os quatro foram indicados por governantes do PT para o STJ.
Luís Felipe Salomão foi nomeado por Lula para o STJ em 2008. O mesmo ministro ganhou notoriedade recentemente como corregedor do TSE, cargo no qual foi responsável por proferir ordem judicial que determinou a desmonetização de sites e influenciadores de direita. A decisão foi bastante criticada por especialistas uma vez que configura nítida forma de censura e não menciona dispositivos legais em sua fundamentação. Ou seja, houve aplicação de sanção sem previsão legal, condenando condutas que não estão previstas como ilícitas na ordem jurídica. Aliás, a maioria das pessoas sancionadas simplesmente não tem uma única ação apontada na decisão. Os alvos eram todos de oposição ao grupo político responsável pela nomeação do ministro ao STJ.
Dentre os outros três ministros que votaram por condenar Dallagnol: Raul Araújo foi nomeado para o STJ por Lula em 2008; enquanto Antônio Carlos Ferreira e Marco Buzzi, por Dilma Rousseff em 2011.
Decisão viola “dupla garantia” insculpida no art. 37, § 6º, da Constituição
Ainda que se entenda que Deltan realmente causou dano moral indenizável – do que discordo -, conforme jurisprudência já assentada pelo STF, caberia ação apenas contra a própria União, a qual posteriormente poderia ingressar com ação de regresso contra o agente público. Essa é uma das prerrogativas que constituem o que no jargão jurídico usualmente chama-se de “tese da dupla garantia”.
Confira precedente do Plenário do STF:
“A teor do disposto no art 37 § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” STF. Plenário. RE 1027633/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 14/8/2019 (repercussão geral) (Info 947).
Logo, a decisão do STJ, parece ter-se equivocado, ao menos, ao afastar a incidência desse dispositivo. Foi nesse sentido, inclusive, o voto vencido da ministra Maria Isabel Gallotti, a qual se manifestou “pela rejeição da ação, por entender que ela deveria ter como alvo a União, uma vez que Deltan Dallagnol atuou como servidor federal no caso.”
Situação exemplifica quase perfeitamente o que se tem chamado de Modelo Atitudinal
Existem várias teorias sobre os reais impactos das fontes formais do direito (lei, precedentes e doutrina) sobre o produto da atuação judicial. Modelos formalistas (ou legalistas) afirmam que a principal variável a definir o resultado de um julgamento seriam essas fontes formais somadas aos fatos do caso.
Essa teoria, no entanto, manifestamente não conseguiria explicar essa caso concreto: no processo movido por Lula, os fatos e as fontes formais permaneceram exatamente idênticos desde quando foram rejeitados pelas instâncias inferiores. A única coisa que mudou no STJ foram os juízes que analisaram o caso.
Percebendo que isso ocorre com mais frequência do que se gosta de admitir, cientistas políticos que se especializaram em estudar o comportamento judicial desenvolveram um modelo chamado atitudinal (attitudinal model), segundo o qual a principal variável para determinar o desfecho de um julgamento seria a posição política dos magistrados. Vide nesse sentido, por exemplo, as seguintes obras: capítulos 2 e 3 do livro de Jeffrey Segal e Harold Spaeth, “The Supreme Court and the Attitudinal Model Revisited”, publicado pela Cambridge University Press em 2002; bem como o capítulo 3 (Assumptions and Hypotheses) na obra de Jeb Barnes, “Overrule?: legislative overrides, pluralism, and contemporary court-Congress relations”, da Stanford University Press, o qual veio a público em 2004.
Qual dos dois modelos estaria correto? O legalista (formalista) ou o atitutdinal? Em minha opinião, não é possível uma resposta tão simples e direta.
Na verdade, ambos os modelos possuem limitações, até mesmo porque a modelagem nada mais é do que a aplicação de uma metodologia típica das ciências naturais ao âmbito das ciências humanas, o que sempre revela insuficiências.
O que parece ocorrer é que ambos os modelos apontam fatores que influenciam em alguma medida o comportamento judicial. Em que medida cada um deles – fontes formais e ideologia política do magistrado – impacta na atividade jurisdicional? Acredito que isso varia de um país para ou outros e até de um Tribunal para o outro dentro do mesmo país.
E essa variação me parece sintomática de um outro fenômeno: da imparcialidade e ausência de cooptação do Poder Judiciário. Assim, quanto menos o modelo atitudinal for capaz de gerar previsões e quanto mais o modelo formal apresentar previsões corretas, menores serão os indícios de sequestro de um determinado órgão judicial por grupos políticos, e vice-versa.
Logo, quando o modelo atitudinal começa a se mostrar excessivamente certeiro, isso deve acender uma luz amarela para a democracia do país, pois ela pode indicar que órgãos judiciais foram sequestrados. E isso representa um grande problema para a democracia.
Quanto a esse ponto, em artigo que trata de espécies de falhas de processo político, o prof. da Universidade da Califórnia Stephen Garbaum aponta que um deles ocorre exatamente quando grupos políticos “miram e capturam instituições projetadas para serem independentes do controle político (…), como tribunais, promotores e comissões”.
Ele indica como essa espécie de captura tende a reduzir o nível de accountibility horizontal do grupo que obtém sucesso na cooptação e como isso tende a consolidar poder em suas mãos, o que “mina a estrutura constitucional da democracia representativa”. Segundo ele, “o novo e corrompido processo político resultante é qualitativamente diferente e muito menos ‘confiável’ do que um baseado em uma maior dispersão de poder e instituições mais robustas de prestação de contas.”
Ele faz uma interessante comparação com o mercado: se a democracia é um mercado de vários players buscando ampliar sua autoridade política por meio da obtenção de apoio (uma espécie de conquista de mercado pela adesão de clientes), a captura de instituições independentes funciona como a implementação de um monopólio de poder pela manipulação das ações do órgão antitruste.
Próximos artigos
Esse possível risco de captura do sistema de justiça por grupos políticos parece-me pouco explorado segundo a literatura de ciência política mais qualificada. Exatamente por isso em meus próximos artigos tratarei desse tema. Buscarei apontar como funciona, segundo a ciência política, a relação entre Cortes e grupos políticos poderosos, segundo os estudos de cientistas como Robert Dahl e Keith Whittington; como isso impacta a democracia; como isso sucedeu em países da América Latina que tiveram suas democracias deterioradas; e qual a leitura que podemos fazer da situação brasileira.